Shakespeare escreveu em Romeu e Julieta “A flor que chamamos de rosa se outro nome tivesse ainda teria o mesmo perfume”, mas na prática isso nem sempre é verdade.
O nome afeta e muito a percepção das pessoas… Vejamos um exemplo: pergunte às pessoas ao seu redor se elas consomem diariamente ‘alimentos desidratados’. Você poderá obter várias respostas, mas muito provavelmente entre elas estará algo como “eu não consumo alimentos desidratados”. Se essa for a resposta, muito provavelmente essa pessoa estará associando ‘desidratado’ com ‘conservado’ ou ‘transformado’ ou algo não natural. Mas aí perguntamos a essa mesma pessoa se há café em grão ou em pó na sua casa, ou arroz, ou feijão, ou uva-passa ou massa de macarrão e muito provavelmente a resposta vai ser “claro que sim”! A pessoa só não percebeu que esses alimentos também foram ‘desidratados’ em algum momento para que pudessem durar mais tempo …
A secagem ou desidratação
Uma das técnicas mais antigas de conservação de alimentos, efetuada pelos humanos desde a pré-história: frutas, grãos, nozes e carnes eram expostas ao sol e ao vento para secarem e assim formarem uma reserva na entressafra. Os nativos do Brasil, mesmo tendo grande abundância de produtos frescos, secavam carnes e peixes sobre o moquém. Marco Polo nos contou que as tropas de Kublai Khan usavam leite desidratado e sabemos que uma das vantagens táticas de Ivan o Terrível era levar alimentos desidratados – como o leite – nas campanhas bélicas.
É interessante observar que as condições climáticas de cada região geraram distintas formas de desidratar os alimentos: nas regiões secas e com verões quentes é comum até hoje a desidratação ser feita ao sol ou sobre pedras expostas ao sol, como fazem os turcos com os figos e os italianos do sul da Itália com os tomates. Aonde há abundância de madeira e o clima é mais úmido e frio, usa-se o calor de um fogo para desidratar alimentos como carnes e linguiças. Aonde não há nem calor nem madeira, usa-se muito o sal como meio de desidratar os alimentos. Outros povos que não têm nenhum desses recursos, inventaram formas extremamente criativas de secar ou desidratar suas reservas: nos Andes até hoje os nativos deixam batatas expostas ao relento e o frio intenso noturno, o que as congela; ao nascer do sol e com o ar rarefeito das montanhas, a água sublimava. Foram eles quem inventaram o processo chamado industrialmente de liofilização!
Retirar a água dos alimentos e só voltar a repor essa água no momento do consumo, se necessário, mostrou ser uma das melhores formas de conservar os alimentos. Essa técnica historicamente apresentou muitas vantagens: além da conservação em si, diminui-se o volume e o peso dos alimentos, facilitando em muito o transporte. Não é para menos que os alimentos desidratados foram a base da alimentação dos marinheiros durante as Grandes Navegações, dos soldados em todas as guerras e de todos os povos migratórios nas suas longas peregrinações. Não houve uma só expedição exploratória que não tivesse entre seu farnel de viagem alimentos desidratados. Aliás, os famosos ‘cubinhos de caldo’ foram inventados não recentemente como muitos pensam, mas em fins do século 18 exatamente como provisão para essas viagens exploratórias.
Quando um nordestino tira do embornal um pedaço de jabá e o come com farinha e rapadura, está repetindo o gesto imemorial de quem sabe que tem que usar judiciosamente as provisões e as forças da natureza para sobreviver. Quando preparamos uma sopa de pacotinho ou um bolo de caixinha no fundo estamos também repetindo esse mesmo gesto imemorial que permitiu ao homem não só conquista dos mares e dos polos … e até mesmo do Espaço!
Escrito por Sandra Mian, nossa nova colaboradora, engenheira de alimentos pela FEA, Unicamp, com vastos conhecimentos em história, sociologia e antropologia da alimentação e dos espaços do habitar (universo da comida e da roupa). Com mais de 30 anos de experiência, desenvolve trabalhos no Brasil, EUA, Canadá e no México. Atualmente pela a empresa de consultoria B-Ahead Consulting Inc., atua em processos de inovação com metodologias como etnografia em profundidade e Design Thinking. Escreve para a revista CarneTec (Brasil e América Latina), uma publicação especializada na indústria de carnes. Em 2017 e 2018 apresentou trabalhos de investigação no prestigiado Oxford Symposium on Food and Cookery e os artigos referentes a essas investigações publicados pela Prospect Books, UK. Com presença ativa nas mídias sociais, criou um grupo de discussão de temas relacionados à comida e alimentação, hoje com cerca de 1,600 membros. Esse grupo permite à consultora entender os mecanismos do storytelling nas comunicações sobre alimentação e saúde e as relações antropológicas e sociológicas da comida com o ser humano. É membro do Culinary Historians Institute of New York e de grupos como o OSFC, Writing the Kitchen, FOST e outros grupos de discussão sobre temas culturais acerca da alimentação.
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